‘Viagra’ feminino, o remédio antimonotonia

A população se tornava longeva e queria garantir a vida sexual plena para além da juventude. Era a chegada do novo milênio quando o surgimento da pílula azul respondeu a estes anseios, ajudando a contornar a disfunção erétil. A partir do lançamento do Viagra, em 1998, já surgiram 26 drogas para tratar diversas disfunções sexuais no homem. Dezessete anos depois, está próximo de ser liberado nos Estados Unidos o primeiro medicamento focado no prazer feminino. Antes mesmo de chegar às prateleiras, já especula-se o impacto comportamental que terá a pílula rosa. Em torno dela, surgem críticas, comemorações acaloradas e a expectativa de que ela possa salvar casamentos longos afetados pela rotina e pela monogamia.

Na corrida por ativar o desejo sexual feminino, a droga que parece sair na frente é a que age no cérebro das mulheres. A flibanserina, que poderá ser aprovada nos EUA, regula os níveis de neurotransmissores do humor. Já o Viagra e seus similares atuam contra a impotência, vascularizando a área genital e, apenas indiretamente, aumentando o desejo sexual, por aumentar a autoestima e a sensação de poder a partir da ereção.

O desejo sexual feminino ainda é pouco conhecido pela ciência, e há nítidas diferenças em relação ao do homem. Enquanto no caso deles, o desejo é geralmente espontâneo, o delas é mais complexo e depende de fatores externos ao ato sexual, como saúde física e emocional, condição socioeconômica e vínculo afetivo.

Além disso, relacionamentos longos têm impactos diferentes no desejo do homem e da mulher. Um estudo da Universidade de Hamburg-Eppendorf, na Alemanha, analisou 2.500 casais e mostrou que novos casais heterossexuais têm níveis parecidos de libido. Mas um ano após o início da relação, esses níveis começam a se distanciar: mantêm-se estáveis no caso do homem e vão caindo no das mulheres. Alguns grupos de pesquisa afirmam que esta diferença é inata à biologia, que homens têm um impulso sexual mais forte. Mas não há consenso, outros preferem explicar o fenômeno a partir da cultura.

Coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade da Universidade de São Paulo (USP), Carmita Abdo reforça que a falta de desejo em relacionamentos longos é mais comum às mulheres do que aos homens. No início da relação, ambos têm um desejo espontâneo, que “brota”, segundo ela. Nas relações mais longas, o padrão se modifica, e, ao contrário do homem, a mulher passar a ter um desejo chamado “responsivo”, ou seja, que responde a um estímulo, não surge espontaneamente.

A mulher então passa a precisar de um estímulo externo maior, como um afago, um convite explícito ou uma fala erotizada, para que ela se mobilize na atividade sexual. Para que a mulher seja uma candidata ao novo tratamento, é preciso que ela apresente uma disfunção sexual e já não responda a esse estímulo mais forte.

— A droga pode ajudar a mulher que está feliz no relacionamento com seu parceiro e que não tem problemas que levam objetivamente a uma libido baixa, como depressão, alto nível de estresse ou alteração hormonal — afirma Carmita. — Antes de mais nada, ela tem que estar saudável, ter um parceiro interessante e vontade de colocar sua vida sexual em movimento… Ou não haverá pilula que dê jeito.

TESTES COM MULHERES EM RELAÇÕES ESTÁVEIS

A flibanserina foi testada em mulheres com diagnóstico de transtorno do desejo sexual hipoativo, aquelas que têm redução ou ausência de desejo sexual e que sofrem com esta condição. Fizeram parte dos estudos clínicos mais de 11 mil mulheres com média de idade de 35 anos e que estavam em relações estáveis e monogâmicas.

A substância já foi rejeitada duas vezes pela agência reguladora de remédios americana, a FDA, sob o argumento de que sua eficácia era muito modesta em comparação ao placebo. No início dos testes, mulheres relatavam de duas a três relações sexuais satisfatórias por mês e, após o início do uso do remédio, passaram a ter uma a mais.

Após forte lobby e uma campanha que ganhou um tom ativista, foi dado, semana passada, o primeiro sinal verde rumo à aprovação da droga. Uma comissão de especialistas da agência votou, por 18 a 6, a favor da entrada do remédio no mercado, com a ressalva de que sejam tomadas medidas para assegurar que pacientes estejam conscientes de seus efeitos colaterais, que incluem desmaios, sonolência, enjoo, tonturas e diminuição da pressão arterial. A decisão final sobre a liberação ou não do medicamento será dada até agosto. Mas as recomendações dos conselhos são frequentemente acatadas.

A droga começou a ser testada pela Boehringer Ingelheim, que após a sequência de relatórios negativos da FDA, transferiu os direitos à recém-criada Sprout Pharmaceuticals, focada apenas no tratamento da falta de desejo feminino e liderada por mulheres.

— Estamos um passo mais próximo de trazer ao mercado o primeiro tratamento para a mais comum das disfunções sexuais femininas — comemorou a CEO da Sprout Pharmaceuticals, Cindy Whitehead.

A notícia também foi celebrada pelo Even The Score, um grupo que reúne diversas associações médicas e de direitos das mulheres e que vem travando uma campanha pela aprovação do medicamento. O grupo chegou a acusar a FDA de discriminação de gênero, já que o Viagra e outros medicamentos para tratar a disfunção sexual masculina foram aprovados em cerca de seis meses de pesquisa, enquanto que o remédio destinado às mulheres está há mais de cinco anos na fila.

“O comitê da FDA fez história para a saúde sexual feminina ao escolher respeitar a ciência e se posicionar a favor de milhões de mulheres americanas que sofrem de disfunção sexual abrindo a porta para um tratamento médico”, afirmou o grupo, em comunicado após o sinal verde da agência.

Endocrinologista reprodutivo da Universidade George Washington, James Simon diz que a FDA vinha usando critérios antiquados e masculinos para avaliar terapias voltadas para o público feminino, o que tornava mais difícil para a indústria e para as mulheres terem suas terapias aprovadas.

— Mulheres podem continuar a ter relações sexuais com ou sem interesse. Isto torna mais difícil diferenciar aquelas que têm desejo das que não têm — explica Simon, que também integra o Even The Score.

CUIDADO PARA NÃO ‘CRIAR’ DOENÇA

Há, no entanto, por parte dos especialistas, a preocupação de que a criação de uma nova droga transforme em disfunção ou doença um comportamento que não necessariamente perturba a mulher.

— O tratamento deve ser feito desde que a mulher se sinta incomodada com a sua falta de libido. Caso contrário, ela não deve se sentir pressionada a procurar um medicamento — alerta Carmita Abdo.

Coordenadora do Projeto Afrodite, do Centro de Sexualidade Feminina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a ginecologista Carolina Ambrogini se diz muito contente com o primeiro passo para a aprovação de uma droga para tratar a libido feminina, mas acredita que uma pílula desse tipo pode decepcionar as mulheres que esperam uma solução milagrosa.

— Esse comprimido não vai ser um Viagra, que tem ação instantânea. Ele é um medicamento que precisa ser tomado todos os dias, com um efeito lento e prolongado. Como toda medicação crônica, ela tem efeitos colaterais, que devem ser acompanhados — ressalta Carolina. — Pode ser uma opção para a mulher em uma relação monogâmica saudável, mas com baixa libido. Mas, se ela não se estimular na sua rotina, com literatura erótica, por exemplo, ou com um parceiro interessado, só o remédio não vai resolver. O mais importante é que estamos, agora, abrindo espaço para pensar a sexualidade feminina também de forma medicamentosa.

Mas nem todos estão aplaudindo o novo recurso. Muitos membros do comitê da agência americana votaram “sim”, mas com grandes ressalvas, por conta dos benefícios modestos do medicamento. Alguns grupos feministas reclamaram que as mulheres “merecem mais” do que a flibanserina, e pedem pesquisas sobre drogas mais eficientes. Outros questionam se a discussão sobre a libido feminina estaria tomando o rumo certo, seguindo em direção aos medicamentos.

— O desejo sexual da mulher é despertado por um série de fatores: um clima envolvente, uma boa desenvoltura erótica, o domínio da mulher sobre o próprio corpo, interesse do parceiro em explorá-lo… Não vejo esses fatores sendo discutidos pela sociedade — comenta Rachel Moreno, psicóloga especializada em sexualidade humana e coordenadora do Observatório da Mulher. — A discussão sobre a libido feminina precisa começar na sala de aula e ir muito além de um frasco de remédio. Afinal, o interesse é tornar o sexo mais prazeroso para a mulher ou vender medicamentos?

Fonte: Portal O Globo