Quando vale acelerar a aprovação de drogas contra o câncer?

O Congresso da Sociedade Americana de Oncologia Clínica, a Asco, em Chicago, nos Estados Unidos, reúne as principais boas notícias sobre a luta contra o câncer. A indústria farmacêutica mostra seus tratamentos inéditos e pesquisadores apresentam estudos promissores sobre  novos caminhos para atacar a doença. Os avanços se traduzem em esperança para os pacientes, que, aos poucos, começam a ter acesso às inovações. Surgem novas opções de imunoterapia, que deixa o tumor mais vulnerável à ação do sistema de defesa do corpo, e são lançadas mais drogas que agem especificamente sobre as mutações que fazem o tumor crescer e se espalhar, as chamadas terapia-alvo. “Em alguns casos, entre 60% e 80% dos pacientes respondem ao tratamento”, diz o oncologista Carlos Gil Moreira Ferreira, vice-presidente para pesquisas clínicas da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica. “Antes dessas abordagens específicas, festejávamos quando a terapia surtia efeito em 30% das pessoas tratadas.” Os resultados animadores são avanços científicos importantes. Mas, ironicamente, colocaram em xeque a maneira como se faz ciência e como os medicamentos são desenvolvidos.

Representantes da indústria farmacêutica e de grupos que defendem o direito dos pacientes querem que esses novos tratamentos cheguem com mais rapidez a quem precisa. Uma reivindicação legítima. O problema é que, para conseguir essa agilidade, é necessário queimar algumas das etapas de pesquisa. O preço a pagar são mais riscos de efeitos colaterais, que passam despercebidos em menos testes, e, talvez, uma eficácia que não seja tão grande quanto a pensada inicialmente. Um estudo apresentado no congresso da Asco e publicado no jornal da Associação Médica Americana, o Jama, dá força à ideia de que é preciso acelerar a pesquisa.

Os autores, liderados pela pesquisadora americana Maria Schwaederle, da Universidade da Califórnia em San Diego, analisaram o resultado de 346 estudos sobre novas drogas para câncer, publicados entre 2011 e 2013. Eles perceberam que, quando os pesquisadores testam medicamentos que agem sobre mutações específicas em pacientes que, sabidamente, têm essas mutações, o resultado é melhor do que quando a droga é testada em pacientes em geral (sem saber se eles têm ou não a alteração genética). Esses resultados já eram flagrantes na primeira das três etapas de testes que são feitos em seres humanos antes de uma nova droga ser aprovada. Nos estudos que selecionaram os pacientes de acordo com as mutações, 30,5% das pessoas respondiam bem ao tratamento. Nas pesquisas em que não foi feita essa seleção, apenas 5% dos pacientes apresentavam resposta à droga.

Parece algo óbvio. E é justamente esse o argumento usado por quem defende acelerar o processo de aprovação de novos medicamentos. Na última etapa de pesquisa, chamada fase 3, um grupo de pacientes usa a droga nova e outro grupo um tratamento já aprovado. É uma maneira de descobrir se o medicamento mais moderno é mais ou menos eficaz que o antigo e de medir, em um número maior de pacientes, seus possíveis efeitos colaterais. A corrente que defende pular a última fase de estudo considera despropositado oferecer a um grupo de pacientes um tratamento antigo, que não é específico para suas necessidades, sabendo que as primeiras fases de teste da nova droga mostraram bons resultados com um agente “personalizado”.

Os oncologistas, que enfrentam, no dia a dia, a dura realidade de encontrar saídas para seus pacientes, reconhecem a necessidade de atualizar o modelo de aprovação de medicamentos, mas são cautelosos em dispensar etapas fundamentais de pesquisa. “Ninguém quer abrir mão dos ensaios clínicos. A questão é como se adequar à nova realidade trazida pela genômica”, afirma Ferreira, da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica. “Na era da terapia-alvo, seria até antiético não conceder o registro acelerado para drogas que tratam pacientes que não têm outra opção.” Isso não significa que os testes da fase 3, comparativos, devam ser eliminados. “A aprovação deve estar condicionada à realização, após o registro inicial, da última fase de pesquisa”, diz Ferreira.

A agência americana que regula os medicamentos, a FDA, já tem aberto exceções e adotado esse tipo de modelo. Concede aprovação antecipada a drogas que apresentem bons resultados na primeira e na segunda fase de testes, quando não há opções equivalentes de tratamento para a doença. Em 2011, concedeu registro acelerado a um medicamento chamado Xalkori, produzido pela farmacêutica americana Pfizer, depois que apenas dois estudos com 136 e 119 pacientes mostraram que a droga agia sobre um tipo específico de câncer de pulmão. Nenhum desses estudos eram comparativos. A aprovação acelerada, contudo, não revoga a necessidade dos testes comparativos, feitos durante a fase 3 dos ensaios clínicos. Ela apenas pode ser apresentada depois de o medicamento chegar ao mercado. No caso do Xalkori, esses resultados vieram a público um ano depois da autorização inicial concedida pela FDA. No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, aprovou o Xalkori em fevereiro deste ano.

Realizar os ensaios da fase 3 está cada vez mais difícil e caro para a indústria. Com os avanços das técnicas de sequenciamento do genoma, o câncer se mostrou um inimigo mais multifacetado do que os médicos pensavam. A descoberta de novas mutações fragmentou os tipos de câncer em novos subtipos, cada vez mais específicos. Com isso, é difícil reunir um grande número de pacientes para fazer as últimas fases de pesquisa, que devem ter mais voluntários. A mutação afetada pelo Xalkori, por exemplo, é encontrada apenas entre 3% e 5% dos pacientes com câncer de pulmão de não pequenas células. “Para recrutar um número maior de pacientes, as empresas têm de recorrer a testes feitos em vários países, multicêntricos, o que é caro e demorado”, diz Edina Koga Silva, coordenadora da pós-graduação em saúde baseada em evidências da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Pesquisadores como Edina estão do outro lado. Prezam evidências de qualidade, como as fornecidas pelos estudos comparativos, como a melhor maneira de avaliar novos tratamentos e garantir a segurança dos pacientes. É uma reivindicação tão legítima quanto à necessidade de acelerar o acesso a drogas promissoras. Não faz tanto tempo que a talidomida, desenvolvida inicialmente como um sedativo na Alemanha, na década de 1950, causou malformações gravíssimas em mais de 10 mil bebês no mundo todo durante os anos 1960. Não havia estudos suficientes para provar que a droga, que parecia aliviar os enjoos durante a gravidez, não atravessa a placenta. A tragédia dos tempos em que as regras para aprovar medicamentos não eram rigorosas fundou o modelo que conhecemos atualmente.

A preocupação é que a aprovação acelerada exponha a população a riscos desnecessários enquanto a última fase de estudo não for encerrada. Quando conclusões são extrapoladas a partir de estudos das fases 1 e 2, que recrutam um número menor de voluntários, há o risco de superestimar a eficácia da nova substância ou de não conseguir identificar efeitos colaterais raros. “Muitas vezes, nem durante a fase 3 é possível flagrar esses riscos, que só aparecem quando o medicamento já está no mercado”, afirma Edina, da Unifesp. Se o risco já existe até na fase 3, na etapas anteriores é maior ainda.

O oncologista americano Vinay Prasad, professor da Universidade de Ciências Médicas do Oregon, preocupa-se, sobretudo, com a eficácia de novas drogas que chegam a custar milhares de dólares ao mês. Ele analisou 36 medicamentos aprovados para câncer entre 2008 e 2012 com base em estudos iniciais. Todos sugeriam que a droga era capaz de diminuir os tumores. Mas, quando se continuou a acompanhar os pacientes por anos, apenas cinco mostraram, de fato, prolongar a vida. “O perigo do registro acelerado de medicamentos é que algumas das aprovações podem ser um erro”, afirma Prasad. “Muitas são baseadas em dados inadequados de eficácia e segurança. Anos mais tarde, descobrimos que essas drogas não funcionam como imaginamos.”

O desafio é encontrar parâmetros que consigam apontar eficácia e riscos de maneira mais rápida, sem abrir mão da segurança. Assim como os avanços científicos exigem tratamentos de melhor qualidade, também requerem estudos de melhor qualidade. Os pacientes agradecem.

– Fonte: Site Época