Na mira das empresas, uso excessivo de tecnologia vira preocupação social

É uma questão global: em uma pesquisa feita pelo instituto Ipsos no Brasil, EUA, França e Índia, 33% dos participantes disseram já ter priorizado o celular em vez de passar tempo com amigos ou família. No Brasil, esse porcentual é de 36%. Além disso, é considerável o número de pessoas que tem uma relação conflituosa com seus dispositivos. O Dependência de Internet, centro de tratamento do Hospital das Clínicas, da Universidade de São Paulo (USP), recebe em média quatro pedidos de ajuda por dia.

É algo especialmente comum entre os mais jovens, como o jornalista Guilherme Soares, de 23 anos. Há quatro anos, ele anda com seu smartphone no bolso e ficar offline tem sido um desafio. “Houve uma época em que se meu celular estivesse carregando longe de mim, eu ficava ansioso”, conta. “É como se faltasse uma parte do meu corpo.”

Quem tem profissões cuja rotina diária está ligada à tecnologia também tem dificuldade para se impor limites. Especialista em mídias digitais, Piero Caíque, de 31 anos, passa mais de 8 horas por dia conectado no trabalho. Ao chegar em casa, obedece a regras para não ficar paranoico. “Hoje, não entro mais no quarto com o celular ou o PC, ou não consigo me controlar”, diz ele, que se assume “viciado em internet”.

 

Debate. Na comunidade médica, ainda não há consenso se a dependência de smartphones ou de internet pode ser considerada uma doença propriamente dita – não há definição sobre o tema na Organização Mundial da Saúde (OMS), por exemplo. Pioneira em estudos sobre o tema, a psicóloga americana Kimberly Young defende a classificação como transtorno.

“A partir do momento que alguém perde o controle, isso não pode ser mais considerado normal”, diz. (leia entrevista ao lado).

Já a psicóloga Anna Lucia King, do Instituto Delete, ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), alega que há muita confusão no debate. “A maioria das pessoas que nos pedem ajuda acha que são viciadas. Depois da nossa avaliação, elas percebem que é só mau uso da internet”, diz.

Segundo a pesquisadora, cujo centro já recebeu mais de mil pacientes nos últimos cinco anos, o vício em tecnologia está ligado a outros transtornos, como ansiedade ou depressão. “Em casos patológicos, a tecnologia é usada para descarregar um componente que já existe na personalidade.”

Para quem tem dúvidas se precisa procurar ajuda, o Hospital das Clínicas da USP coloca à disposição um questionário com oito tópicos. Se houver pelo menos seis respostas positivas, é bom ir atrás de um especialista. O médico Claudio foi um dos que buscou ajuda para o irmão, Pedro, um estudante de 31 anos – os dois pediram para não terem seus nomes identificados. Segundo Claudio, Pedro sempre gostou de internet, mas percebeu que havia algo errado quando o rapaz perdeu o ânimo pela faculdade ou pelos amigos.

“Quando o confrontávamos, meu irmão ficava automaticamente agressivo”, conta Claudio. “Chegou um momento em que não aguentamos mais.” Pedro teve de se mudar do Espírito Santo para fazer o tratamento no Hospital das Clínicas, que consiste em uma sessão semanal em grupo com os pacientes. Além disso, os familiares são convidados a participar de sessões para discutir o cuidado com os próximos.

Em casos mais graves, os pacientes também podem ser encaminhados para sessões com psiquiatras ou medicação. Não foi o que aconteceu com Pedro: “Em três meses, meu irmão já tinha controle no uso do próprio celular. Foi difícil, mas mudou a vida dele”, diz Claudio.

Inevitável. O caso do estudante ressalta um aspecto importante: apesar de poder ser prejudicial, a utilização de smartphones ou da internet é um hábito quase incontornável no dia a dia.

gora, a abordagem das empresas de tecnologia busca promover o uso consciente de suas plataformas – nas próximas versões do Android e do iOS, respectivamente, Google e Apple permitirão que os usuários saibam quanto tempo gastaram no celular por dia ou quantas vezes a tela foi desbloqueada. Será possível ainda silenciar ou reduzir o fluxo de notificações, que causam distração constante, e até mesmo impor limites no tempo de uso. “Não queremos necessariamente que as pessoas usem menos o celular, mas que elas usem de forma mais consciente”, diz Flavio Ferreira, diretor de parcerias do Android para a América Latina.

Pensar no bem estar é também uma estratégia de negócios: afinal, suas receitas estão ligadas ao engajamento dos usuários com os celulares. “Se as pessoas não estiverem bem, as plataformas não conseguem reverter acessos em, por exemplo, compras para seus anunciantes”, diz o professor Edney Souza, da ESPM.

Para especialistas, a proposta das gigantes serve como alerta. “As iniciativas das empresas são ótimas, mas não resolvem o problema”, diz o psicólogo Cristiano Nabuco, do Hospital das Clínicas. “Em casos graves, não há como fugir do tratamento”.

Fonte: Mariana Lima  e Giovanna Wolf Tadini  para ‘O Estado de S. Paulo’. 09.09.2018