Corredores mantêm rotina de treinos e provas

A preparação começou cedo, por volta das 5h30 daquele domingo, 5 de abril. Fernando Oliveira, de 34 anos, acordou sem demora. Na véspera, já tinha separado a roupa, o energético, a garrafa de água e os apetrechos que usaria na corrida. De moto, gastou cerca de 15 minutos para ir de casa até o trabalho, ambos no bairro do Ipiranga.  Ao chegar, fez exercícios de aquecimento e às 6h40 iniciou, na garagem do prédio da empresa, sua primeira maratona, no horário e no dia em que teria participado da largada da Maratona Internacional de São Paulo. Oliveira e outros milhares de corredores estavam inscritos na tradicional prova, adiada para novembro por causa da pandemia.

“Foi um baque”, resume ele, quando ficou sabendo que não haveria o evento. Fazia quatro meses que treinava regularmente – apesar de  sua rotina puxada como estoquista de dia e entregador de pizza à noite – para enfrentar o maior o desafio de um corredor. Para não perder os treinos e levantar o ânimo, recorreu a uma prova virtual: fez o cadastro em um aplicativo e se inscreveu na corrida de 42 quilômetros, quase a mesma distância da Maratona Internacional.

Com um relógio de GPS, Oliveira cronometrou o tempo em que percorreu a distância. Mandou os dados para o aplicativo, que validou o seu desempenho e o recompensou com uma medalha. “Foi a medalha mais importante das 26 provas que fiz”, diz. Oliveira tatuou a conquista da primeira maratona na panturrilha esquerda e postou fotos da medalha nas redes sociais.

 

Ele gastou 4 horas 55 minutos e 55 segundos para completar o percurso. Foram 840 voltas na garagem sob o sol intenso. Na plateia, apenas o vigia da empresa e alguns moradores do prédio vizinho. Durante a prova, ouviu música e podcast para quebrar a monotonia. Imaginou que estava numa prova de rua e tentou reproduzir os rituais da maratona. Ao completar 41 quilômetros, por exemplo, tomou uma dose de cerveja para comemorar a “quase” missão cumprida, como é tradição. “Isso me deu muita motivação para terminar a prova.”

Assim como Oliveira, muitos corredores estão se inscrevendo em provas virtuais por causa da pandemia. E o aumento da procura foi sentido pelas empresas do setor. O aplicativo brasileiro 99RUN, por exemplo, registrou crescimento de 300% no número de participantes de corridas virtuais depois da covid-19.

 

“Quando começou a pandemia fiquei com muito receio de qual seria o impacto e esperava até que fosse negativo, porque as pessoas não estavam treinando”, conta Daniel Ludwig Pawel, criador da plataforma brasileira. “Mas acabou sendo uma surpresa porque tivemos um boom de inscrições.”

No aplicativo, o número de corridas virtuais, feitas em esteiras, escadarias de prédios ou quintais, aumentou 40%. Mesmo a corrida estacionária, que antes era apenas um exercício de aquecimento muito rápido, as pessoas hoje estão fazendo por até uma hora seguida.

Quatro anos atrás, quando começou a plataforma, a intenção de Pawel, que também é corredor, era criar um aplicativo que facilitasse a vida dos atletas que viviam fora dos grandes centros e não tinham acesso às provas que gostariam de participar. Depois, conseguiu conquistar os que faziam provas de fim de semana e também queriam competir durante a semana. “Com a pandemia e o isolamento social, as provas foram canceladas ou adiadas e muitos que tinham preconceito passaram a experimentar as provas virtuais.”

 

Mario Sérgio Andrade Silva, fundador e diretor da Run Fun, uma das primeiras consultorias especializadas em treinamento de corredores e de ciclistas, confirma esse quadro. Diz que antes da pandemia já se fazia tentativas de provas virtuais. Mas poucas pessoas participavam. O isolamento social imposto pela covid-19 mudou esse cenário. Ele cita dois exemplos de provas tradicionais que pela primeira vez, recentemente, ganharam versões virtuais: o Ironman, que realiza competições de  Triathlon, e o Comrades, a ultramaratona realizada na África do Sul, um circuito de até 92  quilômetros.

Silva diz que não só as provas foram reinventadas. Os treinos, também. A grande maioria dos 1.300 atletas que ele orienta continuou se exercitando. “Montamos séries de exercícios para serem feitas em casa e lives diárias”, explica.

O modelo da corrida virtual é o que se apresenta como possível neste momento, mas é um mercado novo”

Christian Schmidt , sócio-fundador da Foco Radical

O adiamento das corridas de rua inviabilizou o serviço que a Foco Radical prestava, fotografando as competições. Outra parte do negócio, a venda de inscrições para esses eventos, por sua vez, teve de mudar para o digital. Agora, são comercializadas inscrições para provas virtuais, que representam apenas cerca de 10% das vendas de antes da pandemia.

Sócio-fundador da Foco Radical, Christian Schmidt explica que os organizadores de provas presenciais estão migrando para corridas virtuais por meio de parcerias com plataformas existentes ou por conta própria. “O modelo da corrida virtual é o que se apresenta como possível neste momento, mas é um mercado novo”, pondera.

 

INICIATIVA PRÓPRIA

Enquanto os organizadores de provas se articulam para virar a chave do mundo real para o virtual, amantes de corridas fazem por iniciativa própria suas provas a distância. Informalmente, eles usam redes sociais e dispositivos de videoconferência para reproduzir o que até pouco tempo atrás acontecia nas ruas.

Atleta há 26 anos, Marta Bréscia, de 61, acumula nada menos do que 14 maratonas no currículo. A última delas, em Atenas, na Grécia. Assim que o isolamento social começou,  ela não queria nem poderia interromper sua rotina de treinos. Asmática, Marta vê nas corridas uma forma de preservar a saúde. Foi assim que decidiu começar a correr dentro do apartamento mesmo, em Perdizes, zona oeste da capital.

 

Uma experiência que ela decidiu usar para organizar uma corrida virtual com o grupo que costuma treinar no Parque da Água Branca, na mesma região da cidade. “Achei que o meu grupo estava meio paradinho”, diz Marta, que não queria ver o desânimo dos amigos. A corrida ocorreu no fim de maio e seguiu todo o ritual de uma prova física.

Com a adesão de mais de uma dúzia de  companheiros de treinos, ela criou um grupo de WhatsApp dos participantes. As postagens começaram na véspera na corrida, com as fotos do uniforme pronto e dos preparativos. No dia, pontualmente às 8 horas, foi dada a largada, com o áudio da contagem regressiva de uma prova de rua, que teve até trilha sonora do filme Carruagens de Fogo.

 

“Foi maluco aquilo, veio uma emoção e comecei a chorar”, lembra a professora de educação física Maria Alice Zimmermann, de 51, uma das participantes do evento promovido pela amiga. Cada um correu no local que tinha à disposição: dentro de casa, na garagem, na quadra do prédio e até ao ar livre, caso da Maria Alice, que estava em um sítio, no interior.

Seguindo o rito das provas, que normalmente terminam com um café da manhã na padaria, a corrida virtual acabou numa sala de videoconferência, cada um com sua caneca degustando o café e o pãozinho. Marta, que batizou a corrida de “Já, já tô lá”, para lembrar a todos que essa situação é passageira, condecorou os participantes com uma medalha de papel onde se lê You are the Best (você é o melhor, em inglês).

 

Ela diz que fez o máximo para reproduzir na corrida virtual o que acontece nas provas de rua, para que todos tivessem a mesma emoção. “Da maratona de Atenas para a corrida dentro do meu apartamento, tudo é emoção”, resume Marta, que até o fim da quarentena planeja fazer uma meia maratona dentro de casa.

A pandemia tornou mais visível a sociabilidade promovida pela corrida. Se havia dúvidas de que essa atividade é de grupo, agora não há mais nenhuma”

Katia Rubio, professora da USP e psicóloga do esporte

 

Na opinião da professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e psicóloga do esporte Katia Rubio, ao realizar provas virtuais os corredores tentam buscar, a fórceps, a situação de normalidade perdida nos últimos meses. A especialista destaca que muito mais do que praticar o esporte, a intenção de criar um prova virtual é manter os ritos de uma atividade essencialmente social. E a medalha, que é o reconhecimento, atesta isso. “A pandemia tornou mais visível a sociabilidade promovida pela corrida. Se havia dúvidas de que essa atividade é de grupo, agora não há mais nenhuma.”

Já Silva, da Run Fun, tem uma interpretação diferente da professora da USP sobre a necessidade dos corredores de realizar provas a qualquer custo. Segundo ele, durante a prática da corrida são liberados uma série de hormônios que provocam uma sensação de bem-estar.

“Esse é o lado fisiológico. E o lado psicológico é: eu tenho de me cuidar.”

Fonte: Márcia De Chiara, para O Estado de S. Paulo. Publicado em 21.06.2020