Cérebro de papel

REINALDO JOSÉ LOPES COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

As dobras e reentrâncias que caracterizam a superfície do cérebro humano costumam ser vistas como um dos fatores por trás da inteligência da nossa espécie. Dois pesquisadores brasileiros, no entanto, podem ter dado o passo decisivo para demonstrar que isso não passa de mito.

Em um estudo publicado na “Science”, uma das principais revistas acadêmicas do mundo, eles argumentam que as dobrinhas não passam de um subproduto da maneira como o cérebro humano (e o de alguns outros mamíferos) acaba assumindo sua forma conforme cresce.

O processo seria muito parecido com o que acontece com o papel quando amassado até virar uma bolinha.

“Ou seja, é algo que não depende de modificação genética. É física pura”, resume a neurocientista Suzana Herculano-Houzel, professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e colunista da Folha. Ela assina o estudo junto com o físico Bruno Mota, também da UFRJ.

Durante muito tempo, cientistas acharam que o grau de girificação (ou seja, de dobras) no córtex, a camada mais externa do cérebro, teria a ver com a capacidade de empacotar mais neurônios.

Com as dobras, a superfície externa do córtex continuaria com o mesmo tamanho, mas a superfície total –ou seja, a área que apareceria se as dobras fossem “endireitadas” e estendidas– cresce. Resultado: mais capacidade de processamento de dados no córtex sem que a cabeça da criatura ficasse enorme.

Só que a análise de várias espécies mostrou que a situação era bem mais bagunçada do que sugeria essa hipótese inicial. Basta dizer que o cérebro dos elefantes é duas vezes mais “enrolado” que o dos humanos, mas tem só um terço dos nossos neurônios.

Ao comparar os dados mais completos sobre o cérebro de dezenas de espécies de mamíferos, a dupla da UFRJ percebeu que alguns fatores simples poderiam explicar o que estava acontecendo. Primeiro, bichos de cérebro pequeno tinham córtex liso. Após certo limiar, as “rugas” apareciam –e o que explicava a maior quantidade delas era a relação entre a área total do córtex e a espessura dele. Se o córtex era relativamente fino com área grande, havia mais dobras; já um córtex mais espesso tendia a ficar menos enrugado.

PRÉ-ESCOLA

Foi então que Mota teve o insight de ligar esses dados com bolinhas de papel, afirma Suzana. Ele bateu o olho e notou que o dobramento do córtex e o do papel amassado seguiam a mesma escala. “Acho que é coisa de físico ter na ‘caixinha’ dele esses dados guardados”, brinca ela.

“Fui para casa naquele dia dirigindo e pensando nisso. Depois não saí da mesa até ter uma série de bolinhas”, conta. De fato, bolas feitas com uma única folha sulfite (mais finas) têm mais dobras, enquanto as feitas com várias folhas se dobram menos.

O nome técnico da coisa, que vale para o córtex e para as bolinhas de papel, é superfície autoevitante: os dois tipos de sistemas se deformam de modo a assumir a configuração mais estável.

Assim, o mais importante para o poder de processamento do cérebro humano seria mesmo o número de neurônios, e não o de dobras.

Apesar disso, o córtex enrugado poderia ter vantagens. Com ele, é mais fácil desenvolver a especialização de funções em áreas cerebrais distintas, e o órgão fica com volume menor, facilitando a passagem rápida de sinais.

 

Fonte: Folha de S.Paulo