Entre a genialidade e a loucura

Figuras famosas, como Vincent Van Gogh e Isaac Newton, ficaram conhecidas por seu comportamento obsessivo e, por vezes, autodestrutivo, mas o porquê da existência desta tênue linha que separa o gênio do louco permanece um mistério. Agora, porém, um estudo genético com base em dados de mais de 86 mil islandeses encontrou uma ligação entre a criatividade e o risco de desenvolvimento de distúrbios mentais como esquizofrenia e transtorno bipolar, numa indicação de que a forma não convencional de pensar e perceber o mundo que marca os gênios, e em excesso perturba os loucos, teriam uma raiz comum.

Embora estudos anteriores já tivessem sugerido que a criatividade e os males psiquiátricos caminham lado a lado, como um que mostrou que o transtorno bipolar era mais comum em famílias onde grande parte de seus integrantes se dedicavam a atividades profissionais associadas ao pensamento criativo e artístico, os cientistas ainda não eram capazes de dizer se isso se dava devido a questões genéticas ou se era simplesmente reflexo de fatores ambientais e socioeconômicos comuns aos membros destas famílias. Assim, esta é a primeira vez que eles acharam uma relação direta entre os dois.

– Pouco se sabe nos caminhos biológicos que levam à doença na maioria das desordens psiquiátricas – explica Robert Power, pesquisador do Instituto de Psiquiatria, Psicologia e Neurociência do King’s College de Londres e primeiro autor de artigo sobre o estudo, publicado nesta segunda-feira na revista “Nature Neuroscience”. – Uma ideia que tem ganhado credibilidade é que estas desordens refletem os extremos do espectro normal do comportamento humano e não são uma doença psiquiátrica distinta. Ao conhecermos quais comportamentos saudáveis, como a criatividade, têm uma biologia em comum com as doenças psiquiátricas, podemos entender melhor quais os processos de pensamento levam uma pessoa a ficar doente e como o cérebro pode estar funcionando mal. Nossos achados sugerem que as pessoas criativas podem ter uma predisposição genética a pensar diferente que, quando combinada com outros fatores deletérios biológicos ou ambientais, levam ao desenvolvimento de distúrbios mentais.

O primeiro obstáculo enfrentado pelos pesquisadores do King’s College e da empresa islandesa deCODE Genetics, que forneceu os dados genômicos populacionais usados no estudo, foi como identificar as pessoas mais criativas, afinal, a criatividade é algo subjetivo e difícil de definir cientificamente. Para isso, eles recorreram às listas de integrantes das associações nacionais de artistas visuais, atores, dançarinos, músicos e escritores da Islândia.

Os cientistas então usaram dados de dois grandes estudos com mais de 150 mil pessoas, nenhuma delas islandesas, que identificou uma série de variações genéticas ligadas ao desenvolvimento de esquizofrenia e transtorno bipolar para montar uma espécie de “placar” do risco de sofrer com estes distúrbios mentais. E ao aplicar este “placar” ao levantamento do genoma dos islandeses, eles verificaram serem capazes de prever quais indivíduos pertenceriam às associação artísticas nacionais da Islândia.

Em replicação do teste, os pesquisadores fizeram o mesmo com dados de cerca de 35 mil participantes de estudos semelhantes feitos na Suécia e na Holanda, novamente prevendo com alto grau de confiabilidade quais destas pessoas faziam parte de associações artísticas em seus países. Segundo os cálculos dos cientistas, os integrantes das associações artísticas islandesas tinham uma chance 17% maior de ter algumas das variantes genéticas associadas à esquizofrenia e aos transtornos bipolares do que a população em geral, enquanto entre suecos e holandeses este número chegou a 25%, e sua posição no “placar” de risco das doenças as colocava aproximadamente no meio do caminho entre as pessoas “normais” e as que de fato sofrem com estes distúrbios psiquiátricos.

– Estamos usando as ferramentas da genética moderna para fazer um estudo sistemático de aspectos fundamentais de como o cérebro funciona – diz Kári Stefánsson, neurologista fundador e presidente da deCODE Genetics e principal autor do artigo sobre o estudo na “Nature Neuroscience”. – Os resultados deste estudo não foram uma grande surpresa, pois para ser criativo você deve pensar diferente do resto da multidão e já tínhamos demonstrado que as pessoas que carregam fatores genéticos que predispõem à esquizofrenia assim o fazem.

Fonte: Portal O Globo