Conexão cérebro-máquina faz paraplégico mexer perna, diz estudo

Os resultados surpreendentes, que acabam de ser publicados na revista especializada “Scientific Reports”, foram conseguidos com a mesma plataforma usada na cerimônia de abertura da Copa do Mundo de 2014. À época, um paraplégico, com a ajuda do exoesqueleto, conseguiu dar um rápido chute numa bola de futebol. A demonstração, no entanto, ainda estava muito distante do sonho de devolver a capacidade de andar a pessoas que sofreram lesões da medula espinhal.

Esse sempre foi o objetivo da equipe do neurocientista paulistano Miguel Nicolelis, da Universidade Duke (EUA) e da Aasdap (Associação Alberto Santos Dumont para Apoio à Pesquisa). Em parceria com colegas brasileiros e de outros países, Nicolelis montou uma grande estrutura de pesquisa básica e de testes clínicos no Rio Grande do Norte e em São Paulo. O novo estudo, que tem a médica Ana Donati, da Aasdap, como uma das autoras, é a primeira publicação oficial dos resultados desse esforço com pacientes humanos.

Ainda é difícil explicar exatamente o que aconteceu com os participantes da pesquisa. Todos eles sofreram lesões classificadas como completas pelos médicos. Ou seja, em tese, os impulsos enviados pelo cérebro deles para controlar as pernas simplesmente não conseguiriam mais passar pela parte lesionada da medula e chegar até os membros. “Além disso, a atividade elétrica dos neurônios que estão localizados na área em torno da lesão fica alterada, como aquele ruído branco que víamos nas antigas TVs analógicas”, compara Carlomagno Bahia, especialista em regeneração do sistema nervoso da UFPA (Universidade Federal do Pará).

A abordagem adotada por Nicolelis e companhia buscou contornar esse problema medindo diretamente a atividade cerebral dos pacientes, fazendo-os imaginar que estavam mexendo as pernas de novo conforme viam um avatar desses membros se movimentando numa tela de realidade virtual. Com isso, as áreas do cérebro que tinham “esquecido” como mexer as pernas voltaram a mapear esse tipo de ação.

De quebra, os paraplégicos recebiam o chamado feedback sensorial das pernas virtuais: um aparelho especial colocado no braço deles lhes conferia a sensação de pressão das passadas em diferentes superfícies, mais ou menos como um controle de videogame que vibra quando o jogador passa por uma lombada com seu carro no jogo. “Essa sensação tátil é extremamente importante para controlarmos o próprio movimento”, diz Bahia.

COM ROBÔ

Depois dessa fase de aprendizado e de exercícios em aparelhos que sustentavam o peso do corpo dos paraplégicos, as mensagens do cérebro usadas para controlar as pernas virtuais foram empregadas para movimentar o exoesqueleto desenvolvido pelos pesquisadores (o mesmo da demonstração da Copa).

A surpresa, porém, veio quando os pesquisadores perceberam, após meses de trabalho, que todos os pacientes, em maior ou menor grau, passaram a ter sensações de dor, de pressão e de equilíbrio na área originalmente afetada pela paralisia. Todos eles também recuperaram a capacidade de contrair ao menos alguns músculos da região paralisada – em especial os ligados ao quadril e ao fêmur. Isso é suficiente para movimentar ao menos um pouquinho as pernas, conforme mostram vídeos feitos pela equipe. Vários deles também conseguiram andar por distâncias curtas com ajuda de andadores, muletas e órteses.

“Para um paciente crônico [cuja lesão ocorreu há vários anos], é um ganho muito importante”, afirma Jocemar Ilha, do Departamento de Fisioterapia da Universidade do Estado de Santa Catarina. “São resultados que não ocorreram nem com terapia celular [na qual células-tronco são usadas para tentar reconstruir o tecido nervoso afetado pela lesão].”

A hipótese de Nicolelis e de seus colegas é que pelo menos algumas das conexões entre a medula e os membros dos pacientes foram preservadas, e que o treinamento com a realidade virtual e o exoesqueleto fez com que elas “acordassem”. No entanto, para a fisioterapeuta Michele Schultz, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, ainda é cedo para dizer que foi isso mesmo o que aconteceu.

“Para mim, o trabalho trouxe muito mais dúvidas do que respostas. Não consigo visualizar os mecanismos celulares e moleculares que poderiam levar aos resultados que eles relatam”, afirma Michele. Para ela, existe a possibilidade de que outros fatores além da interface cérebro-máquina estejam produzindo os resultados positivos, como é o caso da própria estimulação dos músculos dos pacientes nas sessões de treinamento.

A pesquisadora da USP aponta ainda que os aparelhos usados na abordagem são caros e raros no país. “A compreensão que eu tenho das lesões medulares é que elas são tão complexas que uma intervenção só não vai trazer benefícios consistentes. É preciso combinar estratégias”, diz. “Uma possibilidade muito interessante seria combinar essa abordagem com a terapia celular”, sugere Ilha.

– Fonte: Folha de S.Paulo